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Gabriel Cabral e Bárbara Ferreira

OS ESTUDOS DO SR PÊLOS #1


Antes de começar as minhas histórias, queria me apresentar. Sou um jovem com alma velha, um tanto quanto peludo, e um outro tanto nerd, mas acreditem: tenho boas coisas para contar. Aqui, ouso dizer que haverá um pouco de diversão com uma das minhas maiores paixões - o clickinho.

Dizem por aí que sou um felino erudito, mas não concordo. Sou curioso, metódico e adoro compartilhar minhas descobertas. Do conforto da minha estante, prometo trazer algo novo sempre que puder. Quero dividir com você as anotações do meu caderno de estudos sobre as mestras e mestres da fotografia que tanto me inspiram e ensinam a ser um melhor clickerinho.

 

Foto: Mark Kohn

HANNES WALLRAFEN

ALEMÃO/HOLANDÊS (1951 - Presente)

"As vezes você se cega pelos seus próprios olhos."

Foto: Mark Kohn

Apresentações feitas, gostaria de começar minha história de hoje com uma pequena lembrança. Há pouco tempo, conheci uma fotógrafa incrível e percebi nela algo que vai muito além da qualidade de suas fotos. Corinne Noordenbos não é apenas brilhante em seu trabalho documental conceitual, mas também sabe ensinar e compartilhar seu conhecimento. Quando ela veio me visitar no ano passado, tive uma amostra de sua generosidade, Corinne me presenteou com o livro de um amigo fotógrafo - Hannes Wallrafen. Segundo ela, de um trabalho que a fez lembrar de mim. Imagine isso!

Desde então, estou enlouquecido de amor por esse fotógrafo holandês. O cara simplesmente foi a pessoa que traduziu em imagens a obra do escritor colombiano Gabriel García Márquez. Acho que já da para entender o tamanho dessa zica, não? De tanto ler sobre Hannes, tive sonhos bizarros na última madrugada e agora preciso compartilhar esse sentimento que me domina!

Quando li o prefácio desse recém ganhado livro, Eendagreis naar Macondo, ou "Um Dia de Viagem Para Macondo", vi que logo no começo, o próprio García Márquez chancela o talento do fotógrafo. Ele fala em Hannes como alguém que alcançou a mesma qualidade poética que ele. Quer mais? O escritor diz também que Hannes, com suas fotografias, conseguiu submeter Macondo (cidade onde se passa o romance Cem Anos de Solidão) à deslocamentos poéticos por meio de sua visão ficcional e manipulações da realidade. Ele a apresenta através de códigos e cifras, exatamente o que o escritor acredita ser indispensável às artes.

"Primeira Comunhão"

"Primeira Comunhão"

Entre os meus sonhos e delírios, fiquei tentando entender o que me chamava tanta atenção na obra de Hannes e acho que isso vem muito pelo modo como ele agrega a fantasia ao seu trabalho documental. É como se ele me convidasse para esse universo de sonhos, onde fui me perdendo completamente entre devaneios e realidade. No livro, algumas imagens trazem experiências pessoais, misturadas a referências do imaginário coletivo. Fui me entorpecendo com essas cenas, como se, por dias, estivesse impregnado com tudo isso. Confesso que foi uma grande bagunça mental, quase como se eu incorporasse um espírito, mas de alguém que ainda está vivo!

Quanto mais fui tentando entender esse lugar criado por Hannes, mais surreal e genial ele parecia. O escritor colombiano disse que quando Hannes recriou sua versão de Macondo, alcançou um estado de espírito específico, onde conseguiu me mostrar o que ele quer, mas também me permitiu escolher como eu quero que as coisas se encaixem. Vejo isso como um exemplo da sua habilidade ao retratar coisas complexas, como o ciclo da vida.

Na foto "A Plantação de Banana" (abaixo) ele mostra vários tempos diferentes, falando sobre nascimento, vida e morte. Fiquei um tempão vendo o bebê gritando, o lençol ao chão, as mulheres na sombra, as bananeiras caídas e o cacho de bananas verdes em primeiro plano.

Que lugar é esse?, fiquei me perguntando. Estamos ali, fechados dentro de um bananal, sem nenhum outro tipo de informação além dos personagens e seus elementos. Isso é o que nos leva para esse ambiente tão fantástico. Para mim, é esse conjunto de qualidades que garantiu ao artista a construção de universos tão complexos, com arquétipos meticulosos e mitologias profundas, como um diretor de cinema.

"A Plantação de Banana"

"A Plantação de Banana"

Percebi com o tempo, que ele não fotografa camadas superficiais do dia a dia, mas foca nas relações pessoais e etapas da vida que acontecem em níveis mais densos e sublimes - assim como o escritor colombiano, que transforma uma simples barra de gelo e as reações que ela provoca em uma história profunda sobre as lembranças, sobre a vida e a sociedade. Ah, e é claro, comecei a ler o romance Cem Anos de Solidão, outro delírio. Enquanto passava os meus dias pirando nas fotografias de Hannes, fui presenteado com esse novo livro, mais uma obra-prima para a minha estante. Fiquei entre a minha paixão pela imagem e a descoberta de uma outra narrativa tão fantástica quanto. Que viagem!

Como sou um tarado por cliques interessantes, comecei a quase ter espasmos a cada nova imagem que via. O tempo é dilatado nas fotos de Hannes como em um mergulho, onde os segundos parecem passar mais devagar enquanto se prende a respiração. Pessoalmente, acho difícil ficar indiferente às suas fotografias, pois elas parecem, realmente, sugar o ar dos meus pequenos pulmões.

"A Sopa de Tartaruga"

"A Sopa de Tartaruga"

Aos poucos fui recobrando a minha lucidez e percebendo com mais detalhes o que tinha nas fotos do holandês que conseguiam me transportar para uma espécie de realidade paralela. São composições elaboradas, com o uso de muitos planos e uma perspectiva forçada, como na foto "O Carnaval" (abaixo). Ele faz o nosso olhar percorrer a foto, subindo pela escada, conhecendo os personagens deitados nos degraus, passando pela pessoa de vestido e fazendo a curva pelo arco monumental, até chegar ao músico - a única figura ativa, mas na sombra - e descendo pelo corrimão até o último personagem mascarado. Aliada a riqueza de detalhes e perfeita direção de cena, essa tridimensionalidade forçava a sensação de imersão.

"O Carnaval"

"O Carnaval"

O meu olhar foi se encantando mais a cada nova informação descoberta dentro das dessas ricas fotografias. Eu bem tinha dito no começo que estava apaixonado por esse trabalho. Acho que agora dá para entender melhor o porquê.

Depois de muito café e uma cãibra de tanto me debruçar na estante, enquanto retornava do meu estado de êxtase, percebi a forma como o fotógrafo construiu essas imagens e formou uma espécie de labirinto, me aprisionando em sua ficção. Foi nessa hora que vi a importância das escolhas de Hannes ao distribuir seus elementos ao longo do enquadramento e a forma como ele monta um fio condutor entre as várias camadas de significado que se sobrepõem. Eram cores e luzes que pareciam preencher e desenhar as formas e conteúdos das fotos. Vivi momentos de nostalgia.

"O Rio"

"O Rio"

Sem dúvida, mesmo com histórias e objetos distintos, tanto García Márquez quanto Wallrafen conseguem construir um lugar poético complexo, usando do comum, mas sempre carregado de fantasias, mitos, saudades, mistérios, e magia. Enquanto carregava esse livro de Hannes por todos os lugares em que fui nas últimas semanas, não parava de encarar a sua capa, com o Gabo em uma mágica chuva de confetes (a mesma que ilustra nosso encontro de hoje). Só me vinha a mente uma festa, um momento único e queria estar ali, dançando com ele. Por tudo isso, Um Dia de Viagem Para Macondo de 1993 é, para mim, o trabalho mais impactante de Hannes.

Ah, e para quem achava que era “só”, não, meus jovens. Imaginem a minha surpresa ao descobrir que ele passou a explorar o som como material criativo. A sua obra agora é ampliada e cria provocações multissensoriais. Depois de mais de 30 anos de uma intensa produção fotográfica, Hannes descobriu ter uma doença genética que o deixou cego, mudando, em 2004, toda a trajetória de sua carreira artística.

Enquanto fotógrafo, Hannes extrapolava o documental tradicional e se aventurava no campo do fantástico. Já em suas paisagens sonoras ele aborda discussões sobre a condição de pessoas com limitações visuais, e como elas absorvem e produzem arte. Além disso, também traz uma reflexão sobre a limitação dos sentidos em detrimento da visão.

Outros trabalhos de destaque da sua obra são os ensaios:

Recreatie in Nederland - "Lazer na Holanda" (1991) é uma ótima amostra do seu estilo fotográfico. Composto por uma coleção de cenas de recreação dos holandesas, são dirigidas pelo fotógrafo e encenadas por atores do grupo de teatro Tender, feita para antender o convite do Museu de História Holandesa Rijksmuseum.

"Lazer na Holanda"

De Dingen: een serie stillevens in zwart wit - "As Coisas - Naturezas Mortas das Pequenas Coisas Cotidianas" (1996) é um ensaio em que Hannes da importância e se mostra cuidadoso com objetos e situações efêmereas. As imagens carregam sua característica suspensão de tempo.

"As Xícaras"

"As Xícaras"

Onvoltooid Verleden - "Passado Imperfeito" (1998) mostra a atmosfera dos anos 50 e 60 na cidade holandesa de Geldrop. É composto por imagens do acervo familiar de moradores locais, fotografias produzidas pelo próprio artista e também por montagens digitais com imagens variadas.

"Passado Imperfeito"

"Passado Imperfeito"

Van de Tijd en de Tropen - "Do Tempo e os Trópicos" (2002). Nesse trabalho, o fotógrafo retornou a América Latina para tentar recriar um imaginário coletivo sobre Honduras. Esse trabalho foi desenvolvido junto aos hondurenhos Julio Escoto e Guillermo Anderson, que contribuíram com sua escrita e música, respectivamente.

"O Trem"

"O Trem"

Já acordado desse sonho bizarro que foi o Hannes, espero ansioso pela minha próxima descoberta. Talvez algo mais realista, afinal, foi uma viagem intensa. Vejo vocês em breve aqui do conforto da minha prateleira preferida.

 

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*Atualizado em 31 de Maio de 2018

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