Uma espera de três chegou ao fim. E de uma forma que eu não poderia prever. Quando, no meio de 2019, li uma notícia anunciando as futuras exposições do IMS Paulista, um nome aqueceu meu coração, Daido Moriyama. O japonês, que figura no panteão de grandes nomes da história das imagens, teria sua retrospectiva aqui, do outro lado do mundo. Corta, e a pandemia faz o mundo ficar de ponta cabeça. Mas, de um jeito, ou de outro, chegou a hora. E, dessa vez, para minha alegria, junto do meu recém chegado filho, Zig. Com a divulgação de que a tão aguardada mostra finalmente se aproximava, decidi que essa seria a primeira vez que o levaria à uma exposição. Eu sei que ele provavelmente não irá se lembrar desta tarde. A não ser, é claro, pelas várias fotografias que vão certificar o seu currículo. De alguma forma, entretanto, espero que essa experiência marque seu subconsciente, como uma ponta de filme velado, uma imagem borrada na memória, perdida por debaixo de tantas outras que virão.
Daido Moriyama, para mim, é uma força, cheio de energia que dispensa explicações. Basta ver e será impossível ficar impassível. Tão pouco é preciso ser letrado ou erudito para acessar seu trabalho, pelo contrário. E, para deixar claro, isso não é sinônimo de obra rasa e sem subjetividades, de novo, é o contrário. Daido é preciso na forma como consegue equilibrar potência visual direta nas imagens e conceitos elaborados em seus projetos. No fio da história, este japonês de 83 anos já é um "dinossauro", do tipo vivo, obviamente. Figura enorme, voraz, dotado de garras que dão o bote com maestria.
Por isso, ao meu gosto, a curadoria do IMS acerta em cheio ao trazer figuras como Moriyama, medalhão e ainda ativo. Gente que pode oferecer clássicos ao mesmo tempo que nos deixa provar suas últimas visões de mundo, assim como fizeram na excelente exibição de Susan Meiselas, em 2019. É claro que autores dessa qualidade e perfil não se acumulam aos montes. Mas me parece ser a seleção perfeita para uma instituição como o IMS. Especialmente diante do vácuo de espaços públicos que desempenhem um papel de fomento às mostras de fotografia de grande porte, sejam históricas ou contemporâneas.
A exposição, que abriu há alguns dias atrás, quando tínhamos outros compromissos, ficou para este Domingo de Páscoa. Junto a mim, Zig e minha esposa Lígia, um bom público pagão celebrava o nascimento da mostra. Diria que encontrei ali uma quantidade máxima de visitantes para uma boa apreciação, e suficiente para deixar claro o interesse da audiência pelo show. Mas foi um tanto desanimador perceber que, na primeira parte da mostra, mais uma vez o IMS apresentou uma expografia confusa ao remontar uma linha do tempo. E é curioso que se desenhe claramente uma linha temporal pintada em preto nas paredes, mas não se consiga desenhar um espaço que convide o público de forma lógica, ou o conduza sutilmente, ou ainda permita uma experiência mais anárquica. Já havia sentido o mesmo na mostra de Madalena Schwartz, no ano passado, em que obras de extrema potência pareciam concorrer por atenção em linhas do tempo paralelas. Com Moriyama está ainda pior, seus trabalhos clássicos parecem um tanto embaralhados nessa primeira parte. Então, se você se apega à cronologia das coisas, fica a dica: procure pelas datas e vá costurando sua narrativa por conta própria. Tudo ali vale muito a pena, acredite.
Já adianto que a segunda galeria segue na contramão e não sofre desse mal. Permite um vagar livre pelos trabalhos mais recentes expostos nas paredes, circundando uma riquíssima mesa de livros. No geral, a exposição tem ótimos textos e destaca citações preciosas do autor, que acrescentam uma camada inspiradora ao contexto dos curadores. Como sempre, ver lindas impressões é como se esbaldar num banquete, e o IMS cozinhou este muito bem. A mostra traz também um tom instagramável ao adesivar enormes paredes com fotografias cheias de grafismo, características de Daido. Um acerto triplo da curadoria, que economiza, viraliza e dialoga perfeitamente com a linguagem do autor. Outra dica, para o público fitness das escadarias: não perca uma viagem de elevador, e você receberá uma chuva de beijos como boas vindas.
Aliás, aproveitando o gancho das dicas, é bom você reservar um dia inteiro para essa viagem. Minhas 2 horas e meia disponíveis foram pouco para o que esse mergulho demanda. Para quem dispõe de pouco tempo, uma segunda visita é fundamental. Especialmente para poder aproveitar o que só mostras como estas conseguem reunir: livros, documentários e trabalhos audiovisuais. Aos aficionados por fotolivros, talvez valha até agendar um período exclusivo para se sentar na imensa mesa da segunda parte da exibição. Nesse resumo-panorama das publicações de Daido (que produz livros como acumula anos em sua carteira de identidade) temos o prazer de folhear cópias assinadas. Destaque para o seu clássico "Adeus, fotografia!", a legendária "Provoke 3", o imersivo "Tales of Tono", seu periódico "Record 20", e a promessa de um livro-catálogo da exposição que deve chegar em Abril.
Outro bom motivo para ir sem pressa é poder sentar-se ao sofá, ou deitar num puff e se entregar à instalação do Coletivo Coletores, que faz uma releitura do acervo da Revista Record no fundo da segunda parte da exposição. Em uma sala escura, ecoando ruídos da cidade, três projeções de fotografias num fluxo de tempo que se descola positivamente do restante da exposição. Já a projeção de "Um Caçador", inserida no meio da primeira parte da exposição, tem sua narração em um volume que me pareceu estranhamente dominante sobre o restante do espaço, pelo menos para o nível de atenção e apreciação que as leituras e séries me demandaram. De novo, a disposição descompassada nesse primeiro trecho de jornada. Uma terceira obra audiovisual parece ter vindo de última hora, sem tempo para ser alocada apropriadamente. O documentário "Near Equal", exibido em uma televisão no canto do café, quase pulando pela enorme janela que irritantemente faz refletir sua luz na tela do televisor. Como se ali o doc fosse instigar alguma alma desavisada, ou vender um produto em totem de shopping. Este bom documentário mostra Daido em ação, entrevista pessoas próximas e dá tempo de tela para o autor expressar suas visões de mundo, complementando bem a mostra. Merecia ser exibido em melhores condições. Talvez, em uma sala apropriada junto ao "Um Caçador". Quem viu o looping de boas exibições na exposição de Robert Frank, em 2017, ficou com saudades.
Ainda assim, acredito que essa exibição deixa uma bela aula de design. A começar pela identidade visual, que certamente ajudará a manter viva essa mostra nos imaginários de visitantes. Mas especialmente pelo trabalho de Daido. A maneira como ele constrói imagens, "simples" e potentes, é irritantemente boa. E ainda o jeito como produz publicações sem aparas e com diagramações certeiras. Sob esses aspectos, destaco os livros "Carta a Saint-Loup", "Shinjuku" e "Okinawa". Com destaque especial para "Odasaku", por sua primorosa impressão, além de linda escolha de técnicas e materiais.
Para um fotógrafo conhecido por suas imagens em preto e branco (quase sem tons de cinza, tamanho gosto pelo alto contraste), vale ressaltar também a presença de sua produção em cores, que aparece em dois momentos. Em uma pequena sessão na primeira parte da exposição, com ampliações em papel Fujichrome, que só posso descrever como "o puro creme". E, depois, no projeto "Pretty Woman", que ganha um "canto" próprio. Ou, melhor, funciona como coração pulsante da segunda parte da mostra. É ponto alto no uso de imagens adesivadas, destacando a linguagem mais pop que Moriyama dá à cor nessa série.
Por tudo isso, é preciso ver com calma e, se possível, rever com calma. E eu nem te falei da exposição paralela "Realidade e corrosão: fotolivros japoneses contemporâneos", que acontece na biblioteca do IMS. Mas é porque eu também não consegui chegar lá! Fato é que há muito a ser visto, ouvido e absorvido. A obra de Moriyama, que tanto reflete sobre a própria mídia, sobre meios de expressão, serve também como catalisador para que a audiência deixe continuar a fluir toda essa energia que ele emana.
Daido Moriyama ensina tanto. Na maneira livre como elaborou a visualidade de suas imagens e processos criativos. Como filosofou sobre seu trabalho, sobre o mundo a sua volta e sobre si mesmo. Daido é um samurai constantemente afiando sua lâmina. Não de espada, mas de navalha, compacta, quase invisível num rápido gesto de mão, de corte ardente. Enquanto fotógrafo, saí dessa exibição com o dedo do disparador inquieto. Como editor, instigado a devorar acervos pensando em infinitos diálogos possíveis. Enquanto educador e comunicador, louco para vir te dizer que você precisa ir ver essa mostra. Como pai, saí feliz por ter esperado para que essa fosse a primeira exposição do meu filho. Que os cortes de Daido continuem nos cortando por dentro.
Daido Moriyama: uma retrospectiva fica em exibição até 14/08/2022 no IMS Paulista.
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